REPORTAGEM DE CAPA Perigo em alto-mar Mergulhadores da Bacia de Campos Ricardo Fasanello
O mergulhador Marcos Antônio Vieira, 42 anos, reparava um duto de petróleo. A escuridão à sua volta era rompida apenas parcialmente com o auxílio de um robô que iluminava um imenso cardume orbitando ao redor da estrutura metálica e transmitia imagens para a sala de controle do navio, mais de 200 metros acima. Marcos usava o capacete impermeável equipado com lanterna e sistema de comunicação. O macacão de neoprene, largo no corpo para permitir a circulação da água quente que vinha pelo tubo conectado à superfície, dificultava os movimentos. A resistência física era drasticamente reduzida pela pressão atmosférica mais de vinte vezes maior. De repente, o susto. Um peixe enorme, de estimados 200 quilos, abocanhou ferramenta, mão e braço de Marcos, até a altura do cotovelo. Felizmente, tudo não passou do susto. Marcos retirou o braço da boca do peixe, um inofensivo cherne que, em seguida, cuspiu a ferramenta. Ele concluiu o serviço e começou a longa viagem de retorno. Marcos é um dos oitenta mergulhadores de enormes profundidades que trabalham na manutenção de alguns dos 600 poços de petróleo, explorados por 41 plataformas, na Bacia de Campos. A empresa extrai óleo de poços a até 1 800 metros de profundidade. Nesses casos, a operação é toda automatizada. Mas um quarto dos poços fica a até 300 metros e, nestes, o trabalho dessa elite de mergulhadores é fundamental. No Brasil, há apenas duas companhias especializadas em mergulho de alta profundidade – estima-se que sejam apenas 25 em todo o mundo –, a Fugro Oceansat e a Acergy Brasil, ambas contratadas pela Petrobras para operações na Bacia de Campos.
Sustos como aquele de Marcos são comuns no trabalho, mas não são a maior preocupação dos mergulhadores. O tamanho do peixe, aliás, pouco significa em termos de perigo e dor. Outro mergulhador, o também surfista Renato Bellizzi, 39 anos, sofreu muito mais, vítima de um peixe infinitamente menor. Tão pequeno que ele só percebeu a presença do animal quando pisou nele. Era um peixe venenoso que estava escondido sob um duto. "O espinho perfurou o neoprene da bota e furou meu pé. Na hora, foi uma dor alucinante, e eu não sabia exatamente o que era." Bellizzi conseguiu voltar para a câmara e foi medicado. Peixes podem causar graves problemas, mas para os "astronautas" do mar, como eles são conhecidos, a principal preocupação é o equipamento. No mergulho raso, aquele mais comum, atingem-se profundidades de até 50 metros com o auxílio de um cilindro de ar comprimido, uma mistura de oxigênio e nitrogênio. Abaixo dessa profundidade, mudam as regras e os equipamentos. E os riscos aumentam consideravelmente. O trabalho de apenas uma dupla de mergulhadores desencadeia uma complexa operação que envolve dezenas de profissionais. Ainda no navio, os mergulhadores são pressurizados de acordo com a profundidade em que vão trabalhar, nas chamadas câmaras hiperbáricas. Ali, passam a respirar uma mistura dos gases oxigênio e hélio. A primeira mudança no comportamento dos mergulhadores está mais para a comédia do que para o drama. Logo que começa a pressurização, os mergulhadores passam a falar com aquela voz de pato de desenho animado, por causa da ação do gás hélio no organismo. Na hora do trabalho, uma dupla de mergulhadores sai da câmara hiperbárica por uma escotilha e entra na cápsula conhecida como sino, que é lançada ao mar através de um túnel no centro do navio. Quando o sino chega à profundidade demarcada, um dos mergulhadores sai pela escotilha na parte inferior da cápsula, enquanto o outro permanece lá dentro. Após um máximo de seis horas de mergulho, o sino é recolhido, e a dupla volta para a câmara hiperbárica no navio.
Para ficar horas trabalhando no fundo do mar, sob temperaturas que chegam a 6 graus, o traje é aquecido por água quente bombeada do navio por intermédio de um tubo – chamado de cordão umbilical. "Se há uma interrupção no fornecimento da água quente, começa o choque térmico, e o mergulhador tem alguns minutos para voltar ao sino antes de entrar em hipotermia (diminuição drástica da temperatura corporal)", frisa o mergulhador e surfista Robson Gitti, 42 anos, que já enfrentou o problema. A mangueira de água quente se desconectou do traje, mas ele rapidamente a reconectou. "É uma profissão dificílima, perigosa. Mas o que me fascina é a oportunidade de estar em um lugar onde pouquíssimas pessoas neste planeta vão chegar", diz Gitti. A experiência tem um preço. Os mergulhadores são obrigados a viver numa espécie de regime de prisão semi-aberto. A câmara hiperbárica é um cilindro metálico, com 2,5 metros de raio e 6 de comprimento. No interior ficam dois beliches, uma mesa de aço inoxidável e duas fileiras de poltronas, assento e encosto feitos num colchão emborrachado laranja com 10 centímetros de espessura. A câmara é revestida de uma tinta verde-água e repleta de válvulas e tubos. O aspecto é frio, com cheiro de hospital, o lugar é pequeno e quatro mergulhadores permanecem confinados ali durante 28 dias. Saem para mergulhar e voltam direto para a câmara. "É um Big Brother levado ao limite extremo", define Carlos Paschoal, superintendente de mergulho da Fugro Oceansat. A TV fica do lado de fora da câmara e tem apenas 14 polegadas, para poder ser vista através da escotilha de vidro. Não é permitida a entrada de equipamentos elétricos por risco de combustão provocada por fagulha. Apenas o telefone e o alto-falante da TV ficam dentro da câmara. Os mergulhadores precisam de auxílio externo para tudo: tomar água gelada, mudar o canal da TV, acionar a descarga do banheiro. Se houver um problema grave e o mergulhador tiver de sair da câmara, o supervisor autoriza o procedimento. Mas nada acontece de imediato. Se o mergulhador estiver pressurizado, por exemplo, para uma profundidade de 300 metros, ele vai precisar passar por um período de dez dias de descompressão.
Para evitar crises dentro da câmara, os parentes evitam relatar problemas mais sérios nas conversas com os mergulhadores. Em um caso, a descompressão foi antecipada, e, ao sair da câmara, o mergulhador recebeu a notícia: o filho havia morrido e já estava enterrado. Em outra situação, a má notícia chegou ainda dentro da câmara. O mergulhador ligou para a mulher e quem atendeu foi o amante. O marido pediu imediatamente para sair da câmara. "O cara ficou louco, parecia um siri na lata. É uma preocupação constante saber que você está preso e o 'Ricardão', solto", diz um colega do mergulhador. "O confinamento, a sensação de isolamento, afeta muito o aspecto emocional dos mergulhadores", avalia Ricardo Vivacqua, médico responsável pelo atendimento aos profissionais da Fugro Oceansat. O aspecto físico é outro ponto muito exigido. "Há mergulhadores que perdem 4 quilos em apenas um dia de mergulho", conta Cláudio Street, médico da equipe da Acergy Brasil. As duas empresas realizam exames semestrais de todos os mergulhadores do quadro. Em caso de acidentes graves, os médicos são levados ao navio e pressurizados para atender o paciente ferido. "O mergulho profundo é como a Fórmula 1 ou uma viagem espacial. São atividades extremamente perigosas, mas com os riscos muito controlados", frisa Cláudio. A boa notícia é que, nos últimos dez anos, não há registros de mortes ou acidentes graves com mergulhadores das companhias contratadas pela Petrobras. Mesmo no fundo do mar, os mergulhadores acompanham as novidades do mundo aqui na superfície. Durante a Copa do Mundo de 1994, Marcos Antônio estava a quase 300 metros de profundidade quando Branco marcou, de falta, o gol contra a Holanda que levou o time brasileiro à semifinal e ao título. A informação chegou até ele pela voz do supervisor, via rádio. Marcos comemorou com um sorriso e pouco mais. Em junho, ele vai repetir a experiência. Estará confinado entre a câmara hiperbárica e o fundo do mar quando o campeonato se realizar. Marcos, como todos aqui fora, torce para comemorar muitos gols brasileiros, mesmo que com voz de Pato Donald.
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